quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Sobre dicionários



Sábado li na ZH um texto de Cláudio Moreno que me deixou pensando na vida e na minha função atual na Editora (principalmente o trecho destacado).
Isso quer dizer que estou exercendo trabalho dos piores criminosos de antigamente? A sorte é que hoje existe o computador, senão tava frita...
:oP


Sobre dicionários - Cláudio Moreno

Para saudar a chegada do verão, esta coluna oferece a seus leitores um pouco daquele divertimento único que só as palavras podem nos proporcionar. Bom proveito!

1.Nome de cachorro – Câmara Cascudo registrou a antiga tradição brasileira de dar nomes de peixe ao cachorro, a fim de protegê-lo da raiva canina. Por isso abundava, Brasil afora, cachorro chamado Piranha, Cação, Toninha, Tubarão, Siri. Aqui no Sul já vi Tainha, Lambari, Jundiá. É evidente que a biologia popular considerava peixe tudo o que estava no mar; daí a Toninha (outro nome para o boto) e o Siri estarem incluídos na relação. O exemplo mais famoso desse elástico conceito é um dos dois cães imortalizados na nossa literatura, ao lado do Quincas Borba machadiano: a simpática cadelinha Baleia, do Vidas Secas.

No dicionário de Morais (1813), a baleia é descrita como “peixe marinho muito grande; tem a boca quase na testa, o coiro negro, e duro, grandes barbatanas, mamas, e é vivípara; solta de tempos a tempos grandes espadanas de água, que jorram muito alto”. Peixe com mamas... De qualquer forma, a baleia é, até hoje, considerada peixe por grande parte de nosso povo. Quando se fez uma campanha para a comercialização e consumo da carne de baleia, lá nos anos 50, levantaram-se discussões sobre comer ou não comer esta carne na Sexta-Feira Santa. Isso é Brasil; isso somos nós.

2.A palavra, epitáfio de si mesma – O padre teatino Rafael Bluteau (1638-1734) foi uma das grandes figuras do Iluminismo português e autor do primeiro bom dicionário de nossa língua, o famoso Vocabulário Português e Latino, em 10 volumes. Sua linguagem é excelente exemplo do pitoresco estilo da época, quando floresciam as Academias científicas e poéticas; no admirável trecho abaixo, ele descreve a palavra usando a terminologia anatômica de seu tempo, numa fascinante comparação onde nunca sabemos o que é simples metáfora e o que pretende ser uma descrição científica da linguagem:

“À palavra deu a natureza por origem a cabeça da áspera artéria, o ar por corpo, a língua por mãe, e a boca por berço – mas com tão instantâneo descanso que apenas nascida voa, e com tão breve vida que logo nos ouvidos dos circunstantes se sepulta. Porém não acaba a palavra quando morre, porque – ainda que metida na tortuosa sepultura do ouvido, com o osso petroso por campa, e com várias membranas por mortalhas, e quase perdida nos ocultos meatos da parte que os Anatomistas chamam de Labirinto – alentada com o impulso e comoção do ar implantado, acha a palavra abertas as válvulas, ou pequenas portas, por onde passam as espécies de som para o nervo auditório, e dele para os ventrículos do cérebro, onde estão depositados os tesouros da memória; e por este modo fica a palavra na impressão da sua própria espécie, epitáfio de si mesma, sombra da voz e cadáver da locução, até que chegue a lograr outra vida, quando, suscitada da reminiscência, torna a sair da boca ou da pena dos Escritores, e sucessivamente atada a outras com o fio do discurso, participa, com a doutrina dos sábios, nas obras da eloquência.”

3.Fazer dicionário é castigo - José Justo Escalígero, um dos grandes humanistas do Renascimento, sugeria que os piores criminosos, em vez de executados ou sentenciados a trabalhos forçados, fossem condenados a compilar dicionários, por causa de todas as torturas inerentes a esse tipo de trabalho. Nosso bom e longevo Bluteau – para grande desapontamento de seus inimigos, morreu quase centenário, sem perder a lucidez – passou 30 anos escrevendo (a mão!) os 10 imensos volumes que compõem sua obra, mas não se queixava do trabalho. Para ele, o pior vinha depois, com a revoada dos críticos. “Não há autor mais infeliz que o de um Vocabulário”, desabafa; e acrescenta, no seu estilo peculiar: um dicionário “é a coruja dos livros. Ao redor da coruja se ajuntam outras aves, e cada uma delas lhe dá sua picada: folgam todos de folhear um vocabulário para lhe dar unhadas”.

4.A falta que faz um dicionário – O texto que segue é de Ana Maria Shua, argentina, mestra do miniconto, no seu livro La Sueñera. Como a tradução é minha, assumo a culpa por qualquer heresia náutica:

“Baixar a bujarrona! – grita o capitão. Baixar a bujarrona! – repete o imediato. Orçar a bombordo! – grita o capitão. Orçar a bombordo! – repete o imediato. Olho no gurupés! – grita o capitão. O gurupés! – repete o imediato. Abater a verga da mezena! – grita o capitão. A verga da mezena! – grita o imediato. Enquanto isso, a tormenta recrudesce e nós, marinheiros, corremos de um lado para o outro do tombadilho, desconcertados. Se não encontramos logo um dicionário, vamos direto para o fundo!”

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